sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

ESPECIAL - O PRÍNCIPE DO GROTÃO




O macuco, chamado cientificamente de Tinamus solitarius (Viellot), tem seu habitat nas matas. Sua caça está proibida, pois muitos afirmam que a espécie está em extinção. Porém poucos informam que a Mata Atlântica, um de seus principais habitats, está reduzida a 5% de seu volume original. Fica a pergunta: extinção por ser caçado ou extinção por não ter onde viver? Este artigo refere-se a quando se podia caçar e trazer para casa o maior de todos os prêmios de um caçador amador. O chamado “caçador de pio” que carinhosamente chama o macuco de “príncipe do grotão”.





Ainda é escuro e não há sinal do sol quando o caçador de macucos chega no início da picada, sua porta de entrada para a mata virgem. Essa picada muitas vezes é uma simples trilha, aberto pelos animais de palmiteiros ou pelos bois do cortador de toras. Em alguns lugares ainda, pode ser o divisor da propriedade ou alguma linha antiga de telégrafo. Isso ao caçador pouco importa. A picada está lá e ele vai usa-la. Devidamente uniformizado, com roupas de cores escuras ou tecido camuflado, botas florestais, cantil, um facão longo e afiado, cinturão de cartuchos, mochila (onde estão a borracha, os pios, capa de chuva, etc.) e sua velha, mas de confiança, “36”, o caçador aguarda impaciente que o dia clareie um pouco mais para iniciar sua jornada. Com o nascer do sol, uma última olhada para ver se nada ficou para trás, e começa a marcha, lenta, cuidadosa e silenciosa. Após adentrar uma considerável distância na mata, cujo percurso foi todo observado, pois às vezes o macuco está na picada, ao limpo, o caçador depara com uma raiz de uma grande figueira (ou seria um jatobazeiro?) a lhe propor uma parada, para um descanso e o primeiro assoprar do pio do dia.

Macho com filhotes no poleiro, à noite 
Solenemente, devagar, encosta a espingarda na grande árvore, tira a mochila, dá um gole no cantil, acende um cigarro e assopra o pio. Um som breve e agudo ecoa pelos grotões, com ansiedade e esperança. A feição do caçador está agora totalmente modificada. Tenta aparentar tranquilidade, mas as batidas de seu coração estão mais rápidas e fortes. Sua visão passeia pelos arredores do lugar onde está, mas sua atenção está voltada exclusivamente para a resposta do macuco, que pode vir a qualquer momento. O tempo passa, arrastando-se e parecendo uma eternidade. De repente ele escuta o som tão esperado... “fiau”. O macuco respondeu ao seu pio. O caçador, tal é sua prática, já determinou a direção entre si e a ave. Novamente de pé, equipado, sai da picada e entra na mata, onde irá “trabalhar” o macuco. Determinado o local, ele sempre dá preferência a fazer a “choça” tendo uma grande árvore a lhe proteger as costas. O material da cabana é tirado dos pés de palmito e folhas de guaricanga. As folhas do palmito são cuidadosamente cortadas, para não fazer barulho e também para proteger a planta, que continuará a crescer. 

Fêmea piando ao entardecer
Uma a uma, essas folhas vão sendo simetricamente espetadas no chão, em forma de círculo, e a choça começa a tomar forma, faltando apenas as folhas da porta. Com o facão, faz uma pequena limpeza no terreno, tirando uma ou outra folha que poderá atrapalhar-lhe a visão da ave. Seu coração dispara outra vez, pois o macuco piou, agora mais perto. Mentalmente, o caçador sabe “que o bicho está querendo pio.” A borracha (aproximadamente 10m de um tubo flexível, com outro pio na ponta) é esticada, ficando solta pelo chão e o pio da ponta dela, enroscado em um galho a mais ou menos 1 metro do chão.  Uma ultima olhada nos arredores, para algum detalhe final e entra na choça, com toda a sua tralha. Sentado no chão, arruma as últimas folhas e fecha totalmente seu esconderijo. Olha por entre as frestas para certificar-se da totalidade de visão do terreno à sua frente. Afinal de contas, a realização de um bom piador “é trazer o macuco embaixo do pio.” Acomodado na choça, sua vontade é de piar imediatamente, mas sua vivência diz que não. 

Ninho e ovos do macuco
Não demora e a ave, agora muito mais perto, pia novamente. Agora sim, o caçador leva a ponta da borracha à boca e assopra. E 10m à frente, seu pio responde, breve e agudo, igualzinho ao macuco. E tome emoção. Começa o “diálogo” entre o caçador e o macuco. Um pia lá, o outro responde cá. A distância entre os dois, por iniciativa da ave, está diminuindo.  A mata está cheia de ruídos naturais. Um sabiá laranjeira canta suas mágoas lá no espigão. Um vira-folhas teima em fazer barulho à sua frente. Um bando de periquitos passa voando por sobre as copas das árvores. O caçador registra tudo isso, mas sua atenção está voltada para uma só direção. Os intervalos entre os pios da ave são agora de mais ou menos 10 minutos e ela está bem perto. O coração do caçador bate forte em todo o seu corpo. Agora a certeza de que o macuco “pegou” no pio, pois em vez do “fiau”, a ave faz um “quac” fora do tom, e logo atrás de suas costas. O caçador dá um leve toque no pio, traduzido em pequeno assopro.  Chega ao seu ouvido o som da ave andando à sua volta. Mil perguntas lhe assaltam a cabeça.



 “Será que ele me viu?” “A choça está bem feita?” “E esse maldito pernilongo a me morder o nariz. Não posso nem espanta-lo, pois o macuco pode perceber o movimento.” Só quem já esteve nessa situação pode avaliar o que isso representa para um caçador de macucos. Finalmente, como em um passo de mágica, lá está o Tinamus solitarius, bem embaixo do pio. Daqui para frente, paramos a narrativa, já que a caça está fechada, e deixamos o leitor usar sua imaginação. O apertar do gatilho poderá ser o de uma máquina fotográfica, por exemplo. O fim dessa caçada será de sua autoria.


                                                    As notas musicais do piado do macuco

Essas fotos que publicamos (somam mais de 200 no total do trabalho) demoraram alguns anos para serem feitas. Em nossa redação caso seja do interesse do leitor, temos por doação do Dr.Werner, outras fotografias do macuco. A este cientista bastante honesto, de pouca fala mas muito preciso e cuidadoso em suas observações, sugerimos até um título (e isto será para ele uma surpresa com a qual temos certeza de que não irá concordar), com todo o carinho e pelo muito que nos impressionou seu conhecimento: “o pai do macuco”. 
                                             
                                                  CURIOSIDADES

As fêmeas de macuco são o sexo dominante. Sempre são de tamanho maior que o macho (em todas as espécies). Cabe ao macho chocar os ovos e cuidar dos filhotes, o que faz uma vez por ano. O macho somente chororoca para chamar os filhotes. No poleiro, ao entardecer, somente a fêmea pia. O filhote do macuco, ainda dentro do ovo, emite piados. Quando pinto, tem outro tipo de piado. A flauta doce é o instrumento musical que consegue imitar o piado do macuco. Usando um medidor de frequência musical Korg, e com a assistência de Abel Santos Vargas (músico) chegou-se a conclusão que esse piado pode ser descrito como a nota FA3 menos 20 cents ou MI3 mais dois cents. No piado chororocado, usa as mesmas notas, porém, em trinado, e com acentuado fator MI.

Revista Aruanã Ed:02  publicada outubro/1987

4 comentários:

  1. Só não falou do chororocado, que muitas vezes dão ao se aproximarem no pio.
    Chororocadeira ajuda também...

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  2. É o ultimo recurso. Falamos sim, nas curiosidades. Mas isso depende de cada caçador, pois chororocar, se necessita de grande habilidade, diferente de piar, e as fabricadas e vendidas no mercado, deixam muito a desejar em sua qualidade.. Mas valeu. Da próxima vez, por favor coloque seu nome, "até agora, por essa falha" foi publicado como desconhecido". Valeu. Obrigado

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