Estarão sujeitos a essa terrível doença,
principalmente os pescadores que costumam acampar e ficar vários dias isolados
em uma região remota qualquer. Os primeiros sintomas são o nervosismo que
começa a nos atacar, quando tudo começa a nos aborrecer. A cura, por incrível
que pareça, é à volta à civilização. É só meter o pé de volta na estrada, que a
sorumbática desaparece. Tudo começa mais ou menos assim...
A euforia que toma
conta dos pescadores, na véspera de uma pescaria, seja no Pantanal ou na Bacia
Amazônica ou ainda em qualquer outro local distante do seu lar, é enorme. É um
tal de arruma isso, desarruma aquilo, compra de novos materiais – é incrível
que sempre esquece-se de alguma coisa – e reuniões para se combinar com os
companheiros, os detalhes finais da viagem. No dia marcado, tralha toda
arrumada e ajeitada e lá vamos nós em busca de um prazer compreendido somente
por quem pesca. Qualquer viagem dessas é sensacional, ainda mais quando se vai
em caravana, pois sempre tem um que atrasa, fazendo os outros esperarem, e
lógico, devidamente censurado pelos companheiros. Os mais antigos o apelidavam
de Chico Landi, atualmente talvez já chamem o retardatário de Sena ou mesmo
Piquet. E chega-se ao local do acampamento. Monta-se tudo na mais perfeita
ordem e aqui um parêntesis, já que um dos nossos conhecidos gosta de arrumar
tudo tão bem, que quando chega nos finais, está na hora de voltarmos. Por
incrível que pareça, esse pescador faz prateleiras, mesas, bancos, banheiros,
cozinha, etc. Sua paixão é ficar arrumando o acampamento, mesmo que isso possa
lhe custar a pescaria. Mas vamos voltar
à “febre sorumbática” e para tanto, vou contar dois casos acontecidos com um
particular amigo nosso, e merecedor de todo nosso respeito, mas que são
realmente muito pitorescos. Para que não haja problemas, vou chama-lo de senhor
H. Para que o leitor associe a imagem ao fato, digo que o senhor H é um homem
de posses, já beirando os 50, estatura mediana, assim como sua compleição
física. Para finalizar ele tem um sotaque bem acaipirado, o que por certo lhe
dá um charme maior em seus feitos.
1º Caso
Aconteceu em um sertão qualquer de
Mato Grosso do Sul, não importa. O certo é que no terceiro dia de permanência,
o senhor H, que estava numa caminhoneta nova, começou a ser atacado pela “febre
sorumbática”. Nada mais lhe dava sossego, nem mesmo os dourados e pintados
grandes que estavam sendo fisgados. Escutar os companheiros que tentavam lhe
acalmar era motivo de mais febre. Acometido pela “terrível doença”, o senhor H
fazia de tudo para vir embora, com o que, lógico, seus companheiros não
concordavam, afinal de contas, estavam à beira do rio havia apenas três dias.
Mas o senhor H estava acometido da febre e não queria nem saber. Começaram
então suas façanhas. De início, em uma casa de caboclo que havia próxima do
acampamento, ele fez um acordo, ou compra, de pelo menos um alqueire de
canavial. Preço justo e acertado, pago em dinheiro na hora, o senhor H, de
posse de sua caminhoneta, começou a arrasar o canavial todo. Era da esquerda
para a direita, marcha ré, curva fechada ou aberta e valentemente, seu carro ia
derrubando os pés de cana, que “teimosamente” ficavam à sua frente. Foram mais
ou menos duas horas de uma fúria incontida contra o canavial, que só parou,
porque a fricção do carro pifou. E só quem estava lá é que pôde verificar o
olhar de vitória estampado na face de nosso herói, que montado em sua pick-up,
valentemente arrasou com os inimigos. Mal comparado, parecia D. Quixote, em
luta contra os moinhos de vento, no caso, a cana. Aquela noite ele dormiu com
os anjos.Mas no segundo dia após sua particular luta, a febre o acometeu de
novo. Agora, em seu cérebro nasceu a idéia brilhante: como ninguém queria ir
embora, sorrateiramente, à noite, ele esvaziou todos os tambores de gás do
acampamento. Sem gás para cozinhar, todo mundo veio embora.
Na estrada, o mais indignado era ele,
que vinha “metendo o pau” nas companhias especializadas em envasamento de gás,
por fabricarem bujões com esse defeito e arrematava: “se fosse com um só, vá
lá, mas em todos? Não dá mais para confiar”. (?)
2º Caso
E mais uma vez, lá foi o senhor H pescar e com os mesmos
companheiros da vez anterior, ou se preferirem, do gás. Desta feita, a turma já
sabedora de sua facilidade em contrair a sorumbática, se preveniu: fecharam a
chave todos os bujões e não deixaram ir com seu carro. O destino dessa viagem
era mais uma vez um sertão qualquer e já com algumas mordomias, pois nessa
viagem, estavam levando um cozinheiro. Acampamento montado, muito peixe e uma
boa bóia, era a vida para ninguém botar defeito. No terceiro dia, o senhor H
começou a notar que o cozinheiro, após os afazeres do dia, ao se recolher à sua
barraca, de posse de sua viola, ficava tirando alguns acordes, a bem da verdade
sempre os mesmos – noite adentro. Na manhã do quarto dia, os olhos do senhor H
brilhavam de alegria. No almoço, chegou-se para perto do cozinheiro e disse que
tinha gostado da viola e que gostaria de adquiri-la. Começaram a negociação e
após longo papo, o cozinheiro disse que aquela viola ele tinha comprado em
Campo Grande por, na época, 150 cruzeiros. Foi o que o senhor H precisava e na
hora, tirando dinheiro do bolso, ofereceu 500 pela violinha. Ante o dinheiro o
cozinheiro não pensou duas vezes e entregou a viola ao senhor H, que triunfante
a levou até uma árvore próxima e a encostou com carinho no tronco. Afastou-se e
foi até sua barraca. Passados alguns minutos voltou com sua calibre 12 nas mãos
e diante dos olhares estupefatos dos companheiros, meteu os dois canos, com
cartuchos chumbo 3 T, fazendo a viola em pedaços.
Mais uma vez a sua cara era de incrível paz e satisfação interior.
Dois dias mais, e novamente ele começou a ser atacado pela febre. Agora, em
conversa com outros companheiros , começou a perguntar de onde vinha aquela
música, que todas as noites ele ouvia de sua barraca. Informado que vinha da
barraca do cozinheiro, mais uma vez ele foi visita-lo. O ex-dono da viola tinha
ficado bastante impressionado com o modo como o senhor H tinha “tocado” a
viola, e quando na conversa ele mandou que se abrisse o preço no radinho de
pilha, o cozinheiro, como um louco, saiu correndo e abraçado ao seu Spica
(alguém se lembra?), e enquanto corria gritava: “no meu radinho ninguém vai dar
tiro não”. No dia seguinte todos estavam na estrada novamente, pois o
acampamento teve que ser desfeito, por falta de cozinheiro, que furtivamente durante
a noite, carregou todos os “trens” da cozinha e se embrenhou no mato, sem antes
prometer que nunca mais cozinharia para pescadores. Estes dois casos são
verídicos, cujos personagens aí estão para confirmarem as duas histórias. Ainda
mais: posso dizer, com certeza, que quando esta edição estiver circulando, o
telefone irá tocar e do outro lado da linha, uma voz com sotaque bem arrastado
irá dizer: “Toninho, ocê é bem fio da puta para ficar contando meus causos”. Vamos
dar boas risadas com esse telefonema.
NOTA DA REDAÇÃO: Nos bons tempos, era comum os pescadores se
reunirem na Pesca Pinheiros, (com o Edison pai) para um bom bate papo e saber
das novidades de pesca e equipamentos. Foi lá que eu conheci os dois
personagens desta história, que infelizmente, há muito estão pescando em outras
águas. O nome “febre sorumbática” era usado pelo narrador das aventuras. O
senhor H era figura constante na loja e boas risadas demos com suas histórias.
Revista Aruanã Ed: nº12 – Outubro de 89
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